domingo, 2 de novembro de 2008

Anamneses

Leito 1

Maria, sessenta e oito anos, hipertensa, diabética, cardiopata, gorda, infartada. Era bonita. Casou aos vinte, teve cinco filhos, só parto normal. Aos vinte e sete foi abandonada, com os cinco filhos, dois cachorros e uma cabra. Faxineira. Mudou de casa, arrumou um marido novo e comprou um barraco na favela. Viu a vida passar e não estranhou quando foi abandonada pela segunda vez. Pelo menos, dessa vez ficou com o barraco. Dois filhos morreram. Bala perdida ou vingança do tráfico. Os outros casaram e se mudaram. Maria ficou sozinha. Sozinha sentiu a dor começar. Primeiro no peito. Depois, irradiando para o braço esquerdo. Depois mais dor. Maria, que já tinha se acostumado com a dor, ficou assustada. Gritou. Ninguém ouviu. Gritou de novo. Ninguém ouviu. Na terceira vez a vizinha ouviu e chamou a ambulância. Maria chegou parada, mas foi ressuscitada. Agora, Maria não sente dor. Mas também não sente nada. Maria não morreu. Mas que diferença isso faz? Maria nasceu morta.

Nenhum comentário: