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quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Anamneses

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Leito 3 ou "Des-conto de Natal"
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Noel, 50 anos, pardo, morador da Rocinha. Carrega no ombro o peso da carne e do nome. Se morasse na Vila, poderia ter sido sambista. Mas nasceu no morro. De favela em favela, chegou à maior delas. O físico avantajado ajudou, mas foi o nome que determinou seu lugar no mundo - desde sempre iria ser Papai Noel. Profissão ingrata. Quem é que se satisfaz com o que Papai Noel pode oferecer hoje em dia? Já ouviu-se criança dizer que o velhinho se mudou da Lapônia para o Submarino, de onde envia - via sedex e sem cobrar frete - presentes de todo o tipo, durante o ano todo. Se sempre foi gordinho, talvez o estresse, o desemprego e uma penca de crianças insaciáveis tenham piorado a situação. Hoje, Noel pesa cento e oitenta quilos. Hipertenso, diabético, dislipidêmico, angina. Síndrome metabólica - disse o médico. Precisa perder peso - disse o nutricionista. Vamos reduzir o estômago - disse o cirurgião. Não no Natal - disse Noel. Como poderá haver Natal sem Noel? É urgente - disseram todos. Dia vinte e dois de dezembro o estômago de Noel encolheu. Dia vinte e três, boa recuperação. Dia vinte e quatro, febre alta, dor abdominal, distensão, irritação peritoneal. Chame o cirurgião. Vai precisar abrir. Sepse. Barriga aberta - cena bizarra. O estômago encolhido cresceu. Cheio de formas, em plena atividade criativa cuspia ao intestino carrinhos, bonecas, bolinhas de gude... Presentes de antigamente. Expelidos limpos e embalados, iam enchendo o saco de Noel. O cirurgião tentou, em vão, reduzir novamente o estômago de Noel. Era meia-noite do dia vinte e cinco quando o processo cessou e Noel morreu. Chão abarrotado de presentes, embrulhos com laços de fita. Atestado de óbito. Causa do óbito? Sem saber o que dizer, escreveu: descrença. 

sábado, 22 de novembro de 2008

Anamneses


Leito 5
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Francisco, quarenta anos, esquizofrênico. Só isso basta, esquizofrênicos não têm direito de ter outras doenças. Passeava no bosque. Imaginário? Parou, olhou a plantinha, achou bonitinha - parecia um mini-repolho. Comeu a plantinha. Voltou para o castelo. Subindo as escadarias que levavam à grande torre pensou: vou desmaiar. Quase inconsciente, chamou o dragão alado e pediu que o levasse ao grande mago curandeiro. Chegou desmaiado. Em coma, não há distinção entre loucos e não-loucos. De volta à "realidade". Insuficiência respiratória. Broncoaspiração. A plantinha foi parar no pulmão. Sepse. Necrose do pé. Vai ter que amputar. Não dá para esperar. Tem que ser agora. Amputa ou morre. Não pensa. Amputa logo. Choque séptico. Pressão caindo. Não responde ao tratamento. Vai parar. Parou. Ressuscita. Massagem. Adrenalina. Atropina. Adrenalina. Atropina. Adrenalina. Massagem. Bicarbonato. Nada. Não vai voltar. Hora do óbito: três e trinta. De volta à realidade. Diz o dragão: que bom que você voltou. Réplica: também acho.

domingo, 2 de novembro de 2008

Anamneses

Leito 1

Maria, sessenta e oito anos, hipertensa, diabética, cardiopata, gorda, infartada. Era bonita. Casou aos vinte, teve cinco filhos, só parto normal. Aos vinte e sete foi abandonada, com os cinco filhos, dois cachorros e uma cabra. Faxineira. Mudou de casa, arrumou um marido novo e comprou um barraco na favela. Viu a vida passar e não estranhou quando foi abandonada pela segunda vez. Pelo menos, dessa vez ficou com o barraco. Dois filhos morreram. Bala perdida ou vingança do tráfico. Os outros casaram e se mudaram. Maria ficou sozinha. Sozinha sentiu a dor começar. Primeiro no peito. Depois, irradiando para o braço esquerdo. Depois mais dor. Maria, que já tinha se acostumado com a dor, ficou assustada. Gritou. Ninguém ouviu. Gritou de novo. Ninguém ouviu. Na terceira vez a vizinha ouviu e chamou a ambulância. Maria chegou parada, mas foi ressuscitada. Agora, Maria não sente dor. Mas também não sente nada. Maria não morreu. Mas que diferença isso faz? Maria nasceu morta.