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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Também já fui Brasileiro

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia pertubou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meu inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

C.D.A
(Alguma Poesia, in Poesia Completa,Ed. Nova Aguilar, 2006)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A bruxa

Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes
Estou sozinho no quarto
Estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
Anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
Mas é vida. E sinto a Bruxa
Presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
E a essa hora tardia
Como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
Que entrasse nesse minuto,
Recebesse esse carinho
Salvasse do aniquilamento
Um minuto e um carinho loucos
Que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes
Quantas mulheres prováveis
Interrogam-se no espelho
Medindo o tempo perdido
Até que venha a manhã
Trazer leite, jornal, calma.
Porém a essa hora vazia
Como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
Conheço vozes de bichos,
Sei os beijos mais violentos,
Viajei, briguei, aprendi
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras

Mas se tento comunicar-me,
O que há é apenas a noite
E uma espantosa solidão

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
Querendo romper a noite
Não é simplesmente a Bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem.

C.D.A
(José e Outros, in Poesia Completa, Ed. Nova Aguilar, 2006)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Chegar à janela

Há um estilo
de chegar à janela, espiar a rua.
.
Nenhum passante veja o instante
em que a janela se oferece
para emoldurar o morador.
.
De onde surgiu, de que etérea
paragem, nublado sótão,
como pousou, quedou ali,
recortado na penumbra?
.
Modo particularíssimo de ficar
e não ficar ao mesmo tempo
debruçado à jnaela
diante de segunda-feira
e das eternidades da semana.
De frente? De lado? De nenhum
ângulo? Está e não está
presente, é ilusão de pessoa,
vaso-begônia, objeto que mofou,
exposto no ar?
.
A janela e o vulto imobilizado
proibem qualquer indignação.
.
Carlos Drummond de Andrade
(Boitempo, in Poesia Completa, Ed. Nova Aguilar, 2006)


domingo, 24 de maio de 2009

As sem-razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor
.
Carlos Drummond de Andrade
(Corpo, in Poesia Completa, Ed. Nova aguilar, 2006)
.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Por que

Amor meu, minhas penas, meu delírio
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma
sabendo embora ser perdido intento
.
o de cingir-te forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.
.
Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não libertas do teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,
.
por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
a fazer dessa chaga meu prazer?
.
Carlos Drummond de Andrade
(Farewell, 1996)
(repostando porque é lindo e necessário)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

José

.
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
.
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
.
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, e agora?
.
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
.
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você consasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
.
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
.
Carlos Drummond de Andrade
(in José & Outros, Ed. Record, 2007)

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima,
não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade
(Alguma Poesia, 1930)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Por que

.
Amor meu, minhas penas, meu delírio
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma
sabendo embora ser perdido intento

o de cingir-te forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.

Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não libertas do teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,

por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
a fazer dessa chaga meu prazer?

Carlos Drummond de Andrade
(Farewell, 1996)