quinta-feira, 26 de março de 2009

o girassol não toma haldol


o girassol não toma haldol
porque já tem o sol
de que precisa
eu - que nasci frio
não tenho sol no nome
e faço do haldol
o sol que eu
deveria ter tido

quarta-feira, 18 de março de 2009

Definições XI

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Impulso é a medida do esforço necessário para manter um corpo na sua trajetória. Em alguns casos, o esforço é direcionado de modo a manter um corpo em movimento. Exemplo: ir atrás de alguém em uma livraria. Em outros casos, o esforço é para manter o corpo em repouso. Exemplo dois: ficar parado em um ponto, mesmo quando é necessário deslocar-se até outro ponto onde há maior segurança. Os impulsos se manifestam de formas diferentes em pessoas diferentes. Alguns são impulsionados a falar e a sorrir. Outros preferem só olhar e esperar. São impulsos, não são certezas. O impulso é só a potência - o que pode acontecer. Respeite os seus. Por que não?

segunda-feira, 16 de março de 2009

Como se faz música


Alguém pediu para musicar a letra de uma marchinha, para um bloco de carnaval. No dia marcado, fizeram um churrasco - só para musicar a letra da marchinha. Ao chegar, violão no colo, letrão na mão e um copo com caipirinha. E a platéia, braços cruzados, a espera. Alguém exclama - então é assim que se faz música? Risos. Em geral, não tem tanta bebida, nem tanta gente olhando, esperando. Conversa com o dono da letra: qual era idéia? Toda letra já vem com um som mental, uma projeção musical. Ok, entendido. Sai a primeira frase. Urros da platéia. Está nascendo a marchinha. Só a primeira frase... Aos poucos a platéia dispersa-se. É chato ficar de braços cruzados olhando alguém cantarolar baixinho. É assim que se faz música? Exclama um retardatário. Mas sabe que é assim que se faz música? Frase a frase. Encadeando. Como um texto - é um texto. Precisa ter cadência. Precisa ser coeso e coerente. Precisa ter momentos de tensão e de alívio. Precisa prender quem lê ou ouve. Ao final do dia eis que surge a marchinha inteira. Como se sempre houvesse existido. Será que todas as músicas sempre existiram? Só precisam ser achadas em um baú de sons que não tem fundo? Quando penso uma música, e a ouço com o ouvido de dentro, ela existe? Talvez a questão não seja como se faz música, mas como a música se faz dentro de mim.
(para a Bia)

domingo, 15 de março de 2009

Antes tarde do que nunca


Ontem fui ver o Palavra EnCantada no Espaço. E depois, pensando no filme, me lembrei que João Cabral de Melo Neto nunca havia passado por esta humilde sorveteria. Lastimável omissão deste sorveteiro com o grande poeta, que corrijo agora com a ajuda do Cordel do Fogo Encantado.
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Os três mal-amados
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Joaquim:
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
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O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
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O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
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O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
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Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
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O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
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O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
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O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
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O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
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O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
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O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
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João Cabral de Melo Neto.


Lily Braun

domingo, 1 de março de 2009

Um pouco de Milk não faz mal a ninguém

Milk, o preço da liberdade
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Assistindo a "Milk - A Voz da Igualdade", de Gus Van Sant (extraordinário Sean Penn no papel de Harvey Milk), lembrei-me de um e-mail que recebi em abril de 2008. Era uma circular de www.boxturtlebulletin.com (um site sobre os direitos das minorias sexuais), que "comemorava" os 55 anos de um evento sinistro: em 1953, Dwight Eisenhower, presidente dos EUA, assinou um decreto pelo qual seriam despedidos todos os funcionários federais que fossem culpados de "perversão sexual". Essa lei permaneceu em vigor durante mais de 20 anos: milhares de americanos perderam seus empregos por causa de sua orientação sexual. Fato frequentemente esquecido (um pouco como foi esquecida, durante décadas, a perseguição dos homossexuais pelo nazismo), nos anos 50, no discurso do senador McCarthy, a caça às bruxas "comunistas" se confundia com a caça às bruxas homossexuais. Por exemplo, uma carta do secretário nacional do Partido Republicano (citada na circular) dizia: "Talvez tão perigosos quanto os comunistas propriamente ditos são os pervertidos escusos que infiltraram nosso governo nos últimos anos". Essa não era uma posição extrema: na época, a revista "Time" defendeu o projeto de despedir todos os homossexuais que trabalhassem para o governo federal.É nesse clima que, nos anos 70, em San Francisco, Milk se tornou o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público. Poderia escrever sobre as razões que, quase invariavelmente, levam alguém a querer esmagar a liberdade de seus semelhantes. O segredo (de polichinelo) é que muitos preferem odiar nos outros alguma coisa que eles não querem reconhecer e odiar neles mesmos. E poderia contar a história de Roy Cohn, braço direito de McCarthy, que morreu, em 1984, odiando e escondendo sua homossexualidade e gritando ao mundo que a causa de sua morte não era a Aids (ele foi imortalizado por Al Pacino na peça e no filme "Anjos na América", de Tony Kushner). Mas, depois de assistir a "Milk", estou a fim de festejar o caminho percorrido em apenas meio século: o mundo é, hoje, um lugar mais habitável do que 50 anos atrás. Aconteceu graças a milhares de Harvey Milks e a milhões de outros que não precisaram ser nem homossexuais nem comunistas nem coisa que valesse: eles apenas descobriram que só é possível proteger a liberdade da gente se entendermos que, para isso, é necessário defender a liberdade de nosso vizinho como se fosse a nossa. Nos anos 70, quase decorei a carta aberta que James Baldwin (escritor, negro e homossexual) endereçou a Angela Davis (jovem filósofa, negra e militante), quando ela estava sendo processada por um assassinato que não cometera, e o risco era grande que o processo acabasse em uma condenação "exemplar". Baldwin lembrava as diferenças de história, engajamento e pensamento entre ele e Davis, para concluir: "Devemos lutar pela tua vida como se fosse a nossa - ela é a nossa, aliás - e obstruir com nossos corpos o corredor que leva à câmara de gás. Porque, se eles te pegarem de manhã, voltarão para nós naquela mesma noite". Os direitos fundamentais não são direitos de grupo, eles valem para cada indivíduo singularmente, um a um. É óbvio que grupos particulares (constituídos por raça, orientação sexual, ideologia, etnia etc.) podem e devem militar coletivamente pelos direitos de seus membros, mas, em uma sociedade de indivíduos, a liberdade de cada um, por "diferente" que ele seja, é condição da liberdade de todos. Por quê? Simples: se meu vizinho, sem violar as leis básicas da cidade, for impedido de ter a vida concreta que ele quer, então meu jeito de viver poderá ser tolerado ou até permitido, mas ele não será nunca mais propriamente meu direito. "Milk" é um filme sobre um momento crucial na história das liberdades, mas não é um filme "arqueológico". A gente sai do cinema com a sensação renovada de que a militância libertária ainda é a grande exigência do dia. Ótimo assim.Um amigo me disse recentemente que eu dou uma importância excessiva à contracultura dos anos 60/70. Acho, de fato, que ela foi a única revolução do século 20 que deu certo e, ao dar certo, melhorou a vida concreta de muitos, se não de todos. Acho também que suas conquistas só se mantêm pelo esforço cotidiano de muitos. Afinal (quem viu o filme entenderá), surge uma Anita Bryant a cada dia.
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Contardo Calligaris
(na Folha de São Paulo, 26 de fevereiro de 2009)

Ouvindo...