domingo, 30 de novembro de 2008

30 dias de sorvete de morfina

Trinta dias de sorvete de morfina
Abuso. Tolerância. Dependência.
Comemoração na Sorveteria,
esquina da Barata com a Sta Clara
Dose alta acaba rápido
Não demore a chegar
Não vou esperar

bloco de notas

................um bicho solto
................um cão sem dono
................um bandido
................um menino
................um duvida
................um abraça
................um sorri
................um é só lágrimas
................um eu partido
................dois de mim
................um quer tudo
................- e tudo é muita coisa ao mesmo tempo
................um quer nada
................- esse é potencialmente, mas só potencialmente, mais feliz

sábado, 29 de novembro de 2008

Paráfrase do beco

.
..........Querido Manuel,
..................Eu vejo além do beco
..................O problema
..................é que além do beco não há
..................nada.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A arte de sumir e aparecer

Quinta-feira. Acabou o café. Sempre a mesma história. Saio para comprar café. Dessa vez mantenho os planos - é mais seguro. Volto para casa pelo caminho mais curto. Quero evitar surpresas. Não adiantou. Na esquina de casa, antes que eu possa reagir, ele aparece. O Gato de Alice sorri para mim. Conheço essa sensação. "Não sei o que fazer, não sei o que pensar" (lembra-se?) Não sorria assim, Gato de Alice! Eu posso não me recuperar quando, a seguir, você sumir. Resolução de ano-novo: parar de tomar café (ahahahaha...)

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Um dia de Josés

11:35 - Saí da prova pensando em José...

"E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,........................(...)......................Se você gritasse,
o povo sumiu,..................................................se você gemesse,
a noite esfriou,.................................................se você tocasse
e agora, José?..................................................a valsa vienense,
e agora, você?................................................se você dormisse,
você que é sem nome,......................................se você cansasse,
que zomba dos outros,.....................................se você morresse...
você que faz versos,........................................Mas você não morre,
que ama, protesta?.........................................você é duro, José!"
e agora, José?

13:50 - Ligam-me os meus dois Josés, o irmão e o avô. Saudades...

17:30 - Na ABL, está o outro José, aquele ser sisudo, a falar do destrato com que se trata a Língua Portuguesa. "Só se pode transformar aquilo que se conhece profundamente." Recorda o Machado (o dono da casa). E diz que precisa inventar o inventar. Não tem de inventar nada novo. É preciso inventar o "inventar." E para isso "basta deslocar um pouquinho a iluminação do objeto e lá estará o objeto, novo." A conversa termina no Elefante, aquele que viaja. Ainda não conheço o elefante. Terei grande prazer em conhecê-lo, no meu exemplar autografado. Abro o livro e vejo a dedicatória mais bela que já vi em toda vida: "A Pilar, que não me deixou morrer." E viva o José.



terça-feira, 25 de novembro de 2008

Matrix, mirtilos & beijos roubados


Escrevendo em um cyber na galeria dos antiquários. Quarenta e oito horas sem computador dão a medida exata do novo paradigma da solidão humana. Se você não está conectado ao mundo virtual, você não existe. Matrix? Chove. Meus tríceps doem, mudou a série da academia. Parei no supermercado. Encontrei, surpreso, blueberries, que evocaram sonhos perdidos no tempo. Pareciam tão próximos e reais. Durou pouco. Também lembrei do filme, "My blueberry nights", aquele do beijo roubado, da espera e do retorno. Fico pensando em que fase estou - o beijo roubado, a espera ou o retorno. Melhor não pensar nisso. Melhor comer mais uns blueberries. Nem de longe são doces como os que se come no café-da-manhã em New York, mas são bons assim mesmo. Como pela lembrança, não pela doçura. Saudade filha-da-puta de alguém que não sei quem é, nem se existe, nem se é lugar, gente ou bicho. Criaturas imaginárias. Só resta um blueberry. Filho único. E agora? Guardo e deixo a realidade estregá-lo? Ou como e fico com a lembrança do que foi um dia? Tarde demais. Batalha perdida.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008


Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles
(Vaga Música, 1942)

domingo, 23 de novembro de 2008

Noite Transfigurada


Noite Transfigurada
(para o Leo)

noite transfigurada
cantada em versos decassílabos
de um pedaço de papel
rasgado
guardanapo de um café
que guarda
a recordação do que poderia ter sido
se não tivesse não sido
e simplesmente fosse
só um horóscopo
de domingo
esperança
do que talvez um dia será
quando as criaturas
não forem mais imaginárias
quando as vontades
não forem mais imaginárias
quando as imagens
não forem mais imaginárias
quando a noite deixar
de ser transfigurada
num pedaço de papel

Horóscopo de Domingo


sábado, 22 de novembro de 2008

Anamneses


Leito 5
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Francisco, quarenta anos, esquizofrênico. Só isso basta, esquizofrênicos não têm direito de ter outras doenças. Passeava no bosque. Imaginário? Parou, olhou a plantinha, achou bonitinha - parecia um mini-repolho. Comeu a plantinha. Voltou para o castelo. Subindo as escadarias que levavam à grande torre pensou: vou desmaiar. Quase inconsciente, chamou o dragão alado e pediu que o levasse ao grande mago curandeiro. Chegou desmaiado. Em coma, não há distinção entre loucos e não-loucos. De volta à "realidade". Insuficiência respiratória. Broncoaspiração. A plantinha foi parar no pulmão. Sepse. Necrose do pé. Vai ter que amputar. Não dá para esperar. Tem que ser agora. Amputa ou morre. Não pensa. Amputa logo. Choque séptico. Pressão caindo. Não responde ao tratamento. Vai parar. Parou. Ressuscita. Massagem. Adrenalina. Atropina. Adrenalina. Atropina. Adrenalina. Massagem. Bicarbonato. Nada. Não vai voltar. Hora do óbito: três e trinta. De volta à realidade. Diz o dragão: que bom que você voltou. Réplica: também acho.

Definições III

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Gato é quando um ser vivo se destaca na multidão de seres vivos e não havendo outro termo melhor para usar, você diz: é um gato. Habitualmente, andam sobre as quatro patas, embora alguns - os mais perigosos - andem sobre duas patas apenas. Existem em diversas configurações, angorá, persa, siamês, de Alice, egípcio, etc. Alguns mais imaginários que os outros. Todos muito arredios. Três lições sobre gatos: não é você que se aproxima do gato, é o gato que aproxima-se de você; o miado de chamado de hoje pode ser o miado de repulsa de amanhã; todos roubam alguma coisa sua - pode ser um pé-de-meia, pode ser seu coração.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Assim falou Saramago...


Vivo, vivíssimo

Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certo que procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões. Trato de habituar-me sem excessivo dramatismo à ideia de que o corpo não só é finível, como de certo modo é já, em cada momento, finito. Que importância tem isso, porém, se cada gesto, cada palavra, cada emoção são capazes de negar, também em cada momento, essa finitude? Em verdade, sinto-me vivo, vivíssimo, quando, por uma razão ou por outra, tenho de falar da morte…

n'O Caderno de Saramago em 18/11/2008

PS.: Ele está chegando no final-de-semana.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

dispensa maiores comentários...

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Interesse
(Suely Mesquita e Pedro Luís)

Acende uma vela pra Deus
outra pro diabo
agradeço,
você não se interessa mais por mim

Posso passear no bosque
seu lobo não vem mais atrás
agradeço,
você não se interessa mais por mim

Me solta, me deixa, me larga,
tenho mais o que fazer.
não posso ficar nessa de esperar,
nem posso ficar nessa de querer.

O gato acha o rato muito interessante
a cobra acha o sapo muito interessante
agradeço,
você não se interessa mais por mim

Sai de cima, deixa disso de promessa
ão me prende aqui
que eu tô com pressa

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Poema dentuço








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Poema dentuço
(para o Manuel)

Minha cama não tem cabeceira
Só pelo de gato
e poeira
Se tivesse, estaria lá o Bandeira
toda noite a dizer:
Estrela da vida inteira

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima,
não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade
(Alguma Poesia, 1930)

Conjugação

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..........Eu obito
..........Tu obitas
..........Ele obita
..........Nós obitamos
..........Vós obitais
..........Eles obitam

...................Terminando,
...................descansem em paz
...................e apaguem a luz

Definições II

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Dilúvio é quando o bueiro não é suficientemente grande para escoar o líquido que escorre. Ele acumula, sobe, leva com ele o que estiver pela frente e não estiver bem preso. Haverá quem diga que nem sempre o culpado é o bueiro, que a velocidade com que as coisas acontecem pode pegar o bueiro despreparado. A réplica: se o bueiro não está sempre preparado, como pode continuar a ser bueiro?

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Amores, Traições, Objetivos & Barcelona


Ai, ai... Domingo agitado. Prova louca de manhã, encontro inesperado à tarde, Vicky Cristina Barcelona à noite. Gato miando, casa bagunçada, pilhas de livros para ler (um prazer) e uma prova (definidora) em dez dias exatos. Esse antibótico me deixa nauseabundo. Psiquiatria eu te amo. Casa comigo e viveremos felizes para sempre.

Traições. Ando pensando em traições com uma certa freqüência. Como reagir quando alguém te quer mas é comprometido? É melhor ser Vicky? Ou Cristina? María Elena? Certamente o melhor é se mudar para Barcelona. Vicky Cristina Barcelona é novo filme de Woody Allen. Como sempre, o mote são relacionamentos e convenções sociais. Filmaço, amei. Ri. Mas saí com certas dúvidas do cinema. Vicky ama o pintor, mas não tem coragem de largar o marido chato (prá caralho) prá viver a loucura com o pintor. Cristina ama (ou amou em algum momento) o pintor, larga tudo para viver com ele. E María Elena ama o pintor. Que ama María Elena. Mas María Elena e o pintor não dão certo. Falta alguma coisa. Falta Cristina. Não, não é Almodovar. É Woody Allen - em grande forma. O desenlace do polígono amoroso vá descobrir no cinema. O que me interessa são dois pontos. Primeiro: dá prá atingir um equilíbrio entre convenções e interesses? Segundo: Cristina não sabe o que quer, mas sabe bem o que não quer. Descartar o que não quer é o que move sua vida. Insatisfação crônica? É possível saber o que se quer?

Pensei sobre o assunto no metrô, voltando prá casa (perdi a estação...). Cheguei à conclusão que tenho sido mais Cristina que Vicky. Ando descartando o que não quero, mesmo sem saber o que quero. Não sei se isso é saudável. Não sei se isso é socialmente aceitável. Ok, não sei porra nenhuma. Fazer o quê? Convenções são muito chatas. Acho que eu não nasci prá ser linha reta.

sábado, 15 de novembro de 2008

Um instante

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Aqui me tenho
como não me conheço
........nem me quis

sem começo
nem fim
.........aqui me tenho
.........sem mim

nada lembro
nada sei
à luz presente
sou apenas um bicho
.......transparente

Ferreira Gullar
(Muitas Vozes, 1999)

One art


The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Elizabeth Bishop

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Perto do Coração Selvagem


"...sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado correndo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo selvagem."

Clarice Lispector
(Perto do Coração Selvagem, 1944)

Definições

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Abscesso é quando um pedaço de você resolve que não é mais seu, se revolta e vai embora. Antes de ir, faz com que você sinta bastante dor. Uma forma de manter viva a lembrança desse pedaço que não existe mais. Virou líquido. Escoou. Deixou o vazio em seu lugar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Dor de dente


Dor de dente do caralho. Dentista filho da puta que fodeu com a minha boca, eu vou te matar amanhã. Impressionante como a dor faz com que se junte com facilidade três ou quatro palavrões na mesma frase. E pensar que troquei uma obturação rachada e indolor por uma boca inchada e dolorida. Tomei dois tramal de cinqüenta miligrama de vez. Quarenta reais a caixa com dez comprimidos, um assalto. Grande médico sem juízo. O pior: leva uma hora prá fazer algum efeito. Eu quero sorvete de morfina. Dormir. Não dá mais prá pensar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Almofadas, Tangos & Orangotangos


Ando tendo sonhos estranhos. Na noite de sábado sonhei com uma almofada preta. Sim. Almofada preta que sumia num buraco branco, meio Alice no País das Maravilhas, só que sem Alice e sem maravilhas. Por algum motivo (não lembro direito) eu tinha que recuperar a almofada preta. Caí no buraco, ficou tudo escuro. Angústia. Acordei procurando a almofada preta. Não encontrei. Alguém perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim e tudo ficou escuro de novo. Ontem sonhei com orangotangos que tocavam tango. Orquestra completa numa clareira, no meio de uma floresta escura. Não havia regente, ou partituras, ou qualquer sinal de ordem. Mas cada orangotango tocava a sua parte com certeza e precisão, como se tivesse nascido fazendo aquilo. Como se nunca tivesse feito outra coisa. Ou como se vivesse em constante ensaio para um concerto. Parecia ser um tango argentino, um pastiche de Gardel, com cores meio modernas. Não havia pausas na música. Moto contínuo. Foi tudo ficando mais rápido, um acelerando perpétuo. De repente, não ouço mais nada. Mas os orangotangos continuam tocando. O segundo violino da terceira fileira olha prá mim, pisca o olho e solta um sorriso. Eu conheço esse sorriso. Não dá tempo de olhar de novo. Tudo escuro. Tudo claro. Acordado. Gato miando. Tempo nublado. No apartamento ao lado alguém ouve "Paris, Texas". Levanto e retorno ao meu tango diário.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Por que

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Amor meu, minhas penas, meu delírio
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma
sabendo embora ser perdido intento

o de cingir-te forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.

Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não libertas do teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,

por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
a fazer dessa chaga meu prazer?

Carlos Drummond de Andrade
(Farewell, 1996)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Orquestras e Orangotangos

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Então, já viu? São ótimas alternativas ao chatíssimo 007!
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Vi o "Orquestra" na pré-estréia oficial, graças a minha amiga superantenada e bem-relacionada brunamaria. Todo o burburinho, flashes e presença do elenco e do homem sem o qual - nas acertadas palavras da produtora - o filme não existiria, maestro Mozart Vieira. Muita emoção, não só pela história em si, verídica, mas pela perspectiva de que ainda há esperança e gente que faz o mundo valer a pena. Saí do Odeon pensando: "tá vendo? dá prá mudar o mundo sim!" É só começar do seu próprio mundo, ao invés de tentar o mundo dos outros primeiro.
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Os "Orangotangos" vi ontem. Confesso não que conhecia o livro nem o autor, Paulo Scott, nem nunca tinha ouvido falar no filme. Indicação do bonequinho d'O Grobo, sempre um perigo! Mas foi uma experiência interessante. Um filme "sem" cortes - mas com muitos recortes - em que basta passar pela tela para se tornar personagem. Visceral. Depois fiquei remoendo o filme enquanto bebia o 5º expresso do dia, olhava a rua, gastava um pouco mais do dinheiro que não tenho comprando uns livros...
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PS.: Durante a semana tem cinema nacional a R$4.00 para todos, inclusive os que não usam carteirinhas falsas. Política de resgate de público da ANCINE. Tá n'O Grobo de hoje.

domingo, 9 de novembro de 2008

Mais uma do Quintana...

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Astrologia

Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além...

- Meu Deus, o que é que esse menino tem? -
Já suspeitavam desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!

E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...
Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto
.
Mario Quintana
(Baú dos Espantos, 1986)

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


Mário Quintana
(Apontamentos de uma história sobrenatural. 1976)

sábado, 8 de novembro de 2008

Saldo da Madrugada

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Três paradas
Dois choques
Um óbito
(três minutos de silêncio)
...
...
...
Chama o maqueiro
Libera o leito
Tem mais alguém prá morrer esta noite?



Frase do dia, digo, da noite...

u
u
"Ai dotô, ai dotô,
faz passar a minha dor."
u

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Manual de Psicopatologia

Aparência. Atitude. Consciência. Atenção.
Memória. Linguagem. Pensamento. Imaginação.
Inteligência. Pragmatismo. Psicomotricidade. Conação.
Afetividade. Orientação. Sensopercepção.
Consciência de morbidade.
Consciência do eu.
Consciência do eu?
Mas quem sou eu?
Existe um eu?
Sou eu?
Eu?




Poeminha Singelo ou "Valsa Suburbana"


Poeminha Singelo ou Valsa Suburbana*
(para o Gato de Alice)

Dois prá lá, dois prá cá,
vinha eu a caminhar
Pelas ruas de Copacabana

Quando sinto alguém
a me observar
Era o Gato de Alice, à paisana

Olhares fizeram o tempo parar,
a terra tremer
e o fogo acender uma chama - mundana

Convidei-o a comigo dançar
bailar, cantar, amar
pelas ruas sujas de Copacabana

Mas com tristeza no olhar respondeu:
é só que prefiro dançar,
a minha valsa é suburbana

*Valsa suburbana é título de famosa obra de O. Lorenzo-Fernandez para piano solo

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Inspiração para um dia pouco inspirado



Belo Belo


Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.
— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


Manuel Bandeira
(Petrópolis, 1942 - Lira dos Cinquënt'anos)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

We can believe in

Se há alguém que ainda duvida que a América
seja um lugar em que todas as coisas são possíveis,
que ainda se pergunta se o sonho
dos nossos Fundadores está vivo em nosso tempo,
que ainda questiona o poder da nossa democracia,
esta noite é a resposta.
[...]
Esta é a verdadeira maravilha da América: ser capaz de mudar.
(do discurso da vitória, Chicago, 4 de novembro, 2008)
Tomara que não seja só uma verdade provisória...


Verdades Provisórias

Teorias científicas
Música de vanguarda
Imagens no espelho
Filosofia barata
Promessas
Eu te odeios
Eu te amos
Pego de surpresa?
Eu vivo de verdades provisórias

(para o Raphael)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Consertos


Ontem, voltando de São Paulo, pensei em escrever sobre as nuvens, mar de nuvens num céu azul límpido, calmo, tranqüilo, descortinando a grandeza do infinito. Desisti. Esse foi o céu da ida. O céu da volta era cinzento e nebuloso. Turbulências. Eu sempre me pergunto qual a razão do meu trabalho. O porquê de eu fazer o que faço e se isso tem algum propósito (ou se deve ter um propósito). Após quase sete anos embrenhado na difícil seara da Ciência, após muito trabalho, alguns artigos publicados e um doutorado quase terminado, volto a me perguntar: por que eu faço o que faço?

Sempre ouvi, desde o primeiro dia de trabalho, sobre a minha capacidade, inteligência e perspicácia. E sobre como eu deveria (ou deverei) contribuir para mudar o mundo. Eu sempre duvidei disso. Continuo duvidando. Enfim... O que ninguém nunca me explicou direito é como eu vou fazer isso.

É notório que Ciência não é prioridade nesse país. Todo mundo sabe disso. E a despeito das coisas terem melhorado um pouquinho, o futuro é negro. Gente muito mais experiente e capaz que eu também já disse isso. Eu vejo todo dia as pessoas defendendo suas teses, completando suas formações, buscando um grau de aperfeiçoamento cada vez maior, para no fim, tornarem-se desempregadas. Vocações "desperdiçadas" em nome da sobrevivência. Porque, a despeito do amor pela Ciência, cientista precisa comer, pagas contas, aluguel, supermercado, eventualmente o cinema, ir ao teatro, comprar livros... Às vezes, eu acho que as pessoas esquecem disso.

O motivo desse discurso todo é que ontem fiz uma entrevista. Para uma bolsa internacional que financiaria meu pós-doutorado no exterior, caso eu a conseguisse. No meio da entrevista, fui inquirido a convencer meus entrevistadores de que após concluir este pós-doutorado, eu retornaria ao Brasil. Eu, contrariando todo o bom-senso que se esperaria numa situação como esta, respondi que o Brasil é que deveria me convencer a voltar. Não é preciso dizer que essa resposta reduziu significantemente minhas chances de conseguir essa bolsa. Por outro lado, uma questão surgiu na minha cabeça: o que o Brasil espera de mim? Acredito que a resposta que esperavam de mim é que eu voltaria ao Brasil independente de qualquer coisa, com emprego, sem emprego, com ou sem condições de trabalho dignas, com ou sem perspectivas de um futuro produtivo na Ciência, etc. Promessas. Queriam ouvir promessas de amor eterno, ufanismos, idealismos, que, I'm sorry (a entrevista era em Inglês), eu não pude prometer. Recusei-me a prometer, a mentir, a dizer o que eu não penso, e sinceramente não me arrependi e não tentei "consertar" a situação. Cansei de compactuar com a maluquice alheia. Bastam as minhas.

O que vai acontecer depois disso eu não sei. O que sei é que, pelo menos, hoje eu me sinto livre.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Recado II...



"Eu não sou freudiana.

Eu não sou junguiana.

Eu não sou sicrana.

Eu sou Eu."



Nise da Silveira

E tenho dito...



Recado...

Had I the heavens' embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half-light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread upon my dreams.

W.B. Yeats (1865–1939).

in "The Wind Among the Reeds", 1899.
Picture: "The young William", 1877 (attributed to John Butler Yeats)

domingo, 2 de novembro de 2008

Anamneses

Leito 1

Maria, sessenta e oito anos, hipertensa, diabética, cardiopata, gorda, infartada. Era bonita. Casou aos vinte, teve cinco filhos, só parto normal. Aos vinte e sete foi abandonada, com os cinco filhos, dois cachorros e uma cabra. Faxineira. Mudou de casa, arrumou um marido novo e comprou um barraco na favela. Viu a vida passar e não estranhou quando foi abandonada pela segunda vez. Pelo menos, dessa vez ficou com o barraco. Dois filhos morreram. Bala perdida ou vingança do tráfico. Os outros casaram e se mudaram. Maria ficou sozinha. Sozinha sentiu a dor começar. Primeiro no peito. Depois, irradiando para o braço esquerdo. Depois mais dor. Maria, que já tinha se acostumado com a dor, ficou assustada. Gritou. Ninguém ouviu. Gritou de novo. Ninguém ouviu. Na terceira vez a vizinha ouviu e chamou a ambulância. Maria chegou parada, mas foi ressuscitada. Agora, Maria não sente dor. Mas também não sente nada. Maria não morreu. Mas que diferença isso faz? Maria nasceu morta.

Diálogo Diário

Expresso. Duplo, por favor.
Mais um. Não. Duplo. Por favor.
Veio errado. É duplo.
Não. Deixa esse.
Mas traz mais um.
Não. Simples.
Um mais um são dois.
A conta, por favor.
É dupla? Esquece...
Toma, pega o cartão.
E traz mais café.

Dia de finados

Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.


Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.



O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.


(Manuel Bandeira)


sábado, 1 de novembro de 2008

Meus dois Borges

Depois de muito tempo pensando se eu deveria co-habitar ou não com um outro animal, decidi, há alguns meses atrás, por um gato. Influências do Sr. Schmitt, que encontrou o gato em questão "perdido" num petshop na Uruguaiana.
O felino recebeu o honroso nome de Borges e deve ter herdado junto com o nome o temperamento do velho escritor portenho cego. Por falar em nomes, outro dia, no petshop, com o felino no colo, uma senhora se aproxima e diz: "Que lindo! Como se chama?" Respondo: "Borges". Réplica: "Borges, mas isso é sobrenome! Quem coloca um nome desses num gato?". Tréplica falada: "Eu mesmo." Tréplica pensada: "Cale a boca, sua vaca ignorante". Enfim... Não é qualquer um que pode conviver com um gato poeta.



El suicida

No quedará en la noche una estrella
No quedará la noche
Moriré y conmigo la suma
Del intolerable universo.
Borraré las pirámides, las medallas,
Los continentes y las caras.
Borraré la acumulación del pasado.
Haré polvo la historia, polvo el polvo.
Estoy mirando el último poniente.
Oigo el último pájaro.
Lego la nada a nadie.

Jorge Luis Borges
"La rosa profunda". In: _____ Obras completas.
1975-1985. Vol.2. Buenos Aires: Emecé, 1989, p.86.

Chuva




Voltando prá casa, no ônibus, depois de uma noite de trabalho. Tempo nublado. Chove no Rio. No rádio a velha e esganiçada Gal canta:

Não se perca de mim
Não se esqueça de mim
Não desapareça
A chuva tá caindo
E quando a chuva começa
Eu acabo de perder a cabeça
Não saia do meu lado
Segure o meu pierrot molhado
E vamos embolar
Ladeira abaixo
Acho que a chuva
Ajuda a gente a se ver
Venha, veja, deixa
Beija, seja
O que Deus quiser...