Por incrível que pareça o frenesi de junho não foram os livros. Foi a estante. Eu sempre tive tantos livros e nunca tive uma estante. Agora eu tenho. Por poucos dias. Logo, voltarei a ter livros sem estante. Empilhados. Desorganizados. Muito usados e relidos. Por esse breve espaço de tempo há a prateleira dos poetas, a dos filósofos, a dos velhos e dos novos brasileiros, a de Borges e a de Clarice. Simone de Beauvoir olha para um horroroso Jean Paul-Sartre com um cachimbo - téte-a-téte. O amor é cego. Mário Quintana bate papo com Drummond. Bandeira elogia Vinícius e Ferreira Gullar, ainda jovem, não se sente parte do grupo e insiste em ficar caindo de lado. Foucault, por algum motivo obscuro, foi parar em cima da Lógica da Pesquisa Científica. Daqui, de onde escrevo, não consigo enxergar Platão, mas sou insistentemente observado por Freud em vinte e quatro volumes que gritam: análise! análise! análise! As lésbicas modernistas estão deprimidas e se reuniram do outro lado, viradas para o piano. Gertrude Stein talvez não tenha gostado de virar poema. Ou talvez seja porque não gostam de ver meninos dormindo pelados. E Clarice, de ponta-cabeça, que me olha com uma cara séria, como quem diz: tá me lendo? por quê? tá achando que me entende? Eu digo a eles que aproveitem a mordomia e conforto da estante. Aproveitem o direito de ter um lugar só seu, especialmente seu, mesmo que seu por acaso. Em breve só verão o fundo do malão preto e sem graça, sem ar e sem vida. E quando voltarem a respirar, estarão todos - inclusive eu - muito longe de casa. Sem problemas. A dona do iceberg imaginário por um instante se vira e me lembra que a arte de perder - por mais sério que possa parecer - não é nenhum mistério.
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