domingo, 28 de junho de 2009

Definições XV

.
Angústia é quando o peito dói, a cabeça dói, tudo dói e não há remédio que faça passar. Pode ser a espera do tempo que não passa, o documento que não chega, o telefone que não toca, o amor que não se percebe amado, o dia que não clareia, a obra que não termina, o poema que não se escreve, a corrida que não alivia a tensão. As pessoas que sentem tudo muito intensamente sofrem muito com a angústia. Algumas tomam lítio, outras tomam morfina, outras fazem terapia, outras fazem tudo isso junto e ainda fumam um baseado. Nem sempre funciona. Para a angústia não há cura. Com sorte, em algum momento ela passa.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Simbiose

Sou seu poeta só
Só em você descubro a poesia
Que era já minha
Mas eu não via.
.
Só eu sou seu poeta
Só eu revelo poesia sua
e à noite indiscreta
você de lua.
.
Antonio Cícero
(Guardar, Ed. Record 2008)

Ouvindo...


.
Três
(Antonio Cícero & Marina Lima)
.
Um
Foi grande o meu amor
Não sei o que me deu
Quem inventou fui eu
Fiz de você o Sol
Da noite primordial
E o mundo fora nós
Se resumia a tédio e pó
Quando em você tudo se complicou
.
Dois
Se você quer amar
Não basta um só amor
Não sei como explicar
Um só sempre é demais
Pra seres como nós
Sujeitos a jogar
As fichas todas de uma vez
Sem temer, naufragar
Não há lugar pra lamúrias
Essas não caem bem
Não há lugar pra calunias
Mas por que não
Nos reinventar
.
Três
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder partir
Quero poder ficar
Poder fantasiar
Sem nexo e em qualquer lugar
Com seu sexo junto ao mar

terça-feira, 23 de junho de 2009

último plantão

o trânsito da grajaú-jacarepaguá
jaleco branco com doutor bordado em verde
pela última vez
apitos. monitores. bombas. ventiladores.
música de cti
.
lembra-se da primeira parada: assistolia
massagem. adrenalina. massagem.
aprender a massagear corações
o primeiro tubo. a primeira subclávia.
angústia e medo de não saber o que fazer.
quem vai drenar o pneumotórax?
.
dar a notícia
é sempre o pior.
não é.
demonstrar pesar que não existe
por um desconhecido.
isso é pior.
medo de fazer demais e prolongar
o inevitável.
ser médico é aprender a manejar o medo.
sempre há medo
.
hoje há um menino morrendo.
os olhares mudam
quando há meninos morrendo.
alguém pergunta:
- e o menino do leito seis? nada a fazer?
nada a fazer - confirmo.
ver alguém morrer é uma experiência única.
as vidas podem ser diferentes
mas a morte é sempre igual.
o corpo desiste aos poucos
.
quase amanhecendo.
leito quatro
taquicardia supraventricular
não lembro
ligar para um amigo
- o que fazer?
- já tentou adenosina?
- já. instável.
- choque. choque. choque.
- voltou, sinusal.
.
sete e meia
passo o plantão.
vou embora.
sei que estou vivo
mas me sinto
meio morto.
morfina

segunda-feira, 22 de junho de 2009

7

.
...Eu não sou eu nem sou o outro,
...Sou qualquer coisa de intermédio:
........Pilar da ponte de tédio
........Que vai de mim para o Outro.


Mário de Sá Carneiro
(Lisboa, fevereiro de 1914)



domingo, 21 de junho de 2009

Madeira

tinta velha
removida
camadas
de vida
que alguém
pintou
arrancadas
da madeira
com força
bruta
libera
a madeira
e os vícios
as vidas
dos outros
madeira
crua
receba-me

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O gato vai ao veterinário...

.
- Oh, que lindo? Qual o nome dele?
- Borges.
- Oi, Bóris!
- Não, Borges mesmo.
- Ah, tá... Nome estranho, coitado!
- ...
.
- Oh, que coisa fofa! Qual o nome dele?
- Borges.
- Ah, tá... É por causa do azeite, né?
- Ahn?
- É. Azeite Borges.
- ...
.
- Nossa, que gato!
- Como?
- Seu gato. É um gato.
- Ah, sim.
- Tem nome?
- Borges.
- É? E ele mia em verso?
- Só quando tá no cio.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O Motivo da Viagem...


Washington, DC - 06/16/2009 — The Pew Charitable Trusts announced today that Dr. João Monteiro was selected as a 2009 Pew Latin American Fellow in the Biomedical Sciences. Awards this year were given to 10 postdoctoral level scientists who display outstanding promise in research relevant to the advancement of human health.
.
“Pew’s Latin American Fellows Program gives promising young scientists the opportunity to further their knowledge, and encourages scientific collaboration between researchers in the United States and Latin America,” says Shelley A. Hearne, managing director of the Pew Health Group. “We are honored to invest in these great minds, and to provide financial and professional support for their work to advance human health.”
.
João Monteiro, M.D., Ph.D., earned his medical degree and his doctorate in immunology from the Federal University of Rio de Janeiro in Brazil. He will work with Dr. Ronald N. Germain, Deputy Chief of the Laboratory of Immunology of the National Institute of Allergy and Infectious Diseases/NIH.
.
Dr. Monteiro plans to investigate the mechanism by which specialized T-cells of the immune system have “memory” or the capacity to respond faster and better to a foreign challenge than a naive cell. Using advanced imaging methods and fluorescent markers in in vivo mouse model, he will try to gain insight into how memory T cells respond to a foreign challenge, whether it is faster, more sensitive or earlier, in comparison to naive cells in the unique environment of the lymph nodes. This work will contribute to our understanding of immunological memory and will advance the progress towards using immunotherapy tools to combat human disease.
.
The Latin American Fellows Program is one of The Pew Charitable Trusts’ two long-standing commitments in this field, which also includes the Pew Scholars in the Biomedical Sciences. The Fellows program was launched in 1991 to help develop a community of highly-trained scientists to stimulate and contribute to the growth of important biomedical research and foster collaboration among scientists in Latin America and the U.S.
.
Since 1991, Pew has invested over $14 million to fund more than 175 fellows, close to 80 percent of who have returned to their home countries. Applicants from all Central and South American countries are invited to apply to the program, and selection is made by a distinguished national advisory committee, chaired by Dr. Torsten N. Wiesel, president emeritus of Rockefeller University and a 1981 Nobel laureate in physiology or medicine.
.
Complete information about the The 2009 Pew Latin American Fellows in the Biomedical Sciences at

domingo, 14 de junho de 2009

Alívio

.
Odeio domingo de manhã. Odeio domingo de manhã nessa cidade onde nem a folha da azaleia, que dá para a minha janela, balança com o vento. Isso é mentira. Porque odeio domingo de manhã em qualquer lugar. Mas aqui, parece que todos os defeitos do domingo de manhã são ressaltados. Nem ter dormido com Borges e acordado com Clarice diminuiu meu ódio mortal do domingo de manhã. Aliás, só aumentou. Porque, aparentemente, Clarice também tem ódio e é pior que o meu. É do domingo inteiro. Meu ódio do domingo pelo menos diminui no final do dia. Aindo acho que uma segunda-feira é só uma segunda chance. Segunda chance do que? Sei lá. De acontecer o que não sei o que é que deveria ter acontecido na semana passada e não aconteceu. Pode ser? Tá bom assim? Saco de vida em que se tem que explicar tudo, justificar tudo. Parece romance. Romance sempre tem recheio para dar conta de explicar tudo. Romances são cansativos, já disse Borges. Muito melhor viver num conto. Não tem de explicar nada a ninguém. Tem espaço suficiente para toda a complexidade e nenhum espaço para explicações. O leitor entenda como quiser. E se não entender nada, melhor ainda. Antes sinta, que entenda. Ou que só entenda depois de sentir. Ou que só se preocupe com isso muito depois de sentir. Muito melhor. Já passa do meio-dia. Alívio.
.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

12 de junho (Segunda Paráfrase do Beco)

.
Querido Manuel,
.
Que importa o dinheiro, o prestígio, a viagem, o piano, até o gato?
- Cadê o namorado que eu pedi no ano passado?


quinta-feira, 11 de junho de 2009

O enigma da poesia

"Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer. Por exemplo, li com grande respeito o livro sobre estética de Benedetto Croce, em que aprendi que poesia e linguagem são uma "expressão". Ora, se pensamos na expressão de algo, tornamos a cair no velho problema de forma e conteúdo; e se pensamos sobre a expressão de nada em particular, isso de fato não nos rende nada. Assim, respeitosamente recebemos essa definição e passamos adiante. Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia - a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante."
.
Jorge Luis Borges
(Esse Ofício do Verso, Ed. Cia das Letras, 2007)
.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Trabalho de Parto

meu olho grávido
não para de ter
desejos
.
o último, estúpido:
- comer feijão com chocolate
no domingo à tarde
.
satisfeitos os desejos,
entra em trabalho de parto
e não sai mais
.
meu olho grávido
não para de parir
lágrimas
.
cada uma que nasce
faz questão de se lembrar
meio-órfã
.
cada lágrima parida
já nasce com a culpa
de não ser pura
.
impura lágrima que
nasce sem o motivo
(como se precisasse)
.
impura porque gestada
e parida em olho
de pai solteiro

Ouvindo...


..
Florindo
(Mariana Aydar)
.
Por que você chora tanto
E sofre sem ter motivo?
Vai, deixa todo esse rancor pra trás
Que a vida vem sorrindo pra nós dois
.
Que bom ver você florindo
Desperta, cheia de luz e de verdade
Deixa fugir do seu peito
Essas marcas de um passado que só vão te magoar
.
Por que você chora tanto
E sofre sem ter motivo?
Vai, deixa todo esse rancor pra trás
Que a vida vem sorrindo pra nós dois
.
Que bom ver você sorrindo
Desperta, cheia de luz e de verdade
Deixa fugir do seu peito
Essas marcas de um passado que só vão te magoar
.
Paixão,
.
Quem quer viver bem no presente encontra o seu lugar
Seu lugar nos braços do sossego
Enquanto uns dizem que o tempo não pára
Outros dizem que o tempo
Não passa de ilusão, ilusão
.
Deixa estar, que a vida é mais sábia
Cada coisa tem seu tempo
E esses pensamentos
Não passam de nuvem rasa
E todo esse sofrimento
Não pertence à sua casa
.
Cesso esse tormento,
Enxugo todo seu pranto
Com a força e com o sentimento
Que carrego no meu canto

domingo, 7 de junho de 2009

Ouvindo...

clique aí e ouça também...
http://www.youtube.com/watch?v=NkpTV-xpiQM
.
Dura na Queda
(Chico Buarque)
.
Perdida
Na avenida
Canta seu enredo
Fora do carnaval
Perdeu a saia
Perdeu o emprego
Desfila natural
.
Esquinas
Mil buzinas
Imagina orquestras
Samba no chafariz
Viva a folia
A dor não presta
Felicidade, sim
.
O sol ensolará e estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas
.
Bambeia
Cambaleia
É dura na queda
Custa a cair em si
Largou a família
Bebeu veneno
E vai morrer de rir
.
Vagueia
Devaneia
Já apanhou à beça
Mas para quem sabe olhar
A flor também é
Ferida aberta
E não se vê chorar
.
O sol ensolará e estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas

Reaprendendo a ver

.
Amanhece e estou acordado. Sozinho e acordado. Aos poucos a visão deixa de ser turva, sombras clareiam, vultos ganham rostos. Devagar. A luz fere pupilas que não dilatam. Pouca luz, na penumbra. De olhos fechados, sozinho, recomeço. É de olhos fechados que reaprendo a usá-los. De olhos fechados reaprendo a ver e me surpreendendo com o resultado.
.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

terça-feira, 2 de junho de 2009

a prática do autocontrole: nível avançado

.
- Tá muito tenso e ansioso.
- Faz uma massagem?
- Faço.
- Só uma massagem?
- Hum... leva o rivotril também.
.

Procurando

.
...
.
quando encontrar
aviso

Chegar à janela

Há um estilo
de chegar à janela, espiar a rua.
.
Nenhum passante veja o instante
em que a janela se oferece
para emoldurar o morador.
.
De onde surgiu, de que etérea
paragem, nublado sótão,
como pousou, quedou ali,
recortado na penumbra?
.
Modo particularíssimo de ficar
e não ficar ao mesmo tempo
debruçado à jnaela
diante de segunda-feira
e das eternidades da semana.
De frente? De lado? De nenhum
ângulo? Está e não está
presente, é ilusão de pessoa,
vaso-begônia, objeto que mofou,
exposto no ar?
.
A janela e o vulto imobilizado
proibem qualquer indignação.
.
Carlos Drummond de Andrade
(Boitempo, in Poesia Completa, Ed. Nova Aguilar, 2006)


segunda-feira, 1 de junho de 2009

O Frenesi de Maio

.
Maio chegou e mandou o verão definitivamente embora. Começou com uma chuvinha e terminou em temporal. Só da janela para fora. Do lado de dentro o clima continuava quente e inspirado por muita poesia. Pela porta entraram um gato e alguns poetas. Drummond e sua Poesia Completa (finalmente achei), Ana C., A teus pés, e Guardar, do Antonio Cícero. Até voltei a arriscar uns poemas... O mês seguiu entre encontros e desencontros. Na expectativa da escrita de uma tese de doutorado que não saía (ou do encontro que não ocorria), passei pelo Baratos e achei Cartas de Perto do Coração, correspondência entre Clarice e Fernando Sabino. Alguns contos, Trocando em Miúdos, inspirados por canções do Chico, e Clarice, Felicidade Clandestina e os Laços de Família. No meio do mês, já desesperado porque a tese recusava-se a passar para o papel, cansei dos contos e dos poemas. Saí em busca de um romance. Mas eles andam escassos no mercado e acabei voltando de mãos vazias. Resolvi seguir meu próprio romance, com direito a cenas tórridas e marcas no pescoço. Última semana de maio. Intervalo nas leituras porque agora vai. E foi. Cinco dias depois, minha filha nasceu. Antes que o mês acabasse, resolvi trocar de passaporte. Cinco minutos na Travessa do Leblon e o Noll e o Bolaño invadiram minha bolsa. Acabei Lorde ontem (adorei!), mas ainda não deu prá começar Noturno Chileno. Agora que tenho certeza que estou indo passar um tempo fora do país, quando compro um livro sempre penso: vai dar prá levar? Respondo sempre que já tem coisa demais que não dá para levar. Os livros vão. Ponto. E viva a bagagem extra.
.